terça-feira, 24 de junho de 2008

ELE NUNCA FEZ A LIÇÃO DE CASA


Hoje, Ubirajara Gomes da Silva deve começar a fazer os testes exigidos para ser contratado como escriturário pelo Banco do Brasil. São testes de saúde e uma entrevista que funciona como teste psicológico. Nele, Ubirajara terá que contar a sua vida. Até a madrugada de ontem, ele não sabia que história contaria. Tinha medo de contar a verdade. Uma verdade que ele mesmo considera inacreditável.

Há um ano, Ubirajara foi aprovado no concurso do Banco do Brasil. Ficou na 136ª colocação no Recife. Eram mais de 19 mil candidatos. Na última semana, finalmente, foi convocado para assumir o cargo. Porém, Ubirajara sequer tinha um documento. Nem a certidão de nascimento. Este homem praticamente não existia para a sociedade. Ele mesmo se sentia "invisível", talvez até "irreal". Isso explica porque durante a entrevista para esta reportagem, Ubiarajara perguntou várias vezes que impressão estava causando. "O que será que as pessoas vão pensar de mim?", questinava, com a insegurança de quem está se sentindo real pela primeira vez na vida.

Há 12 anos, Ubirajara da Silva mora pelas ruas do Recife.

A mentira

Ubirajara nunca conheceu seus pais. Foi abandonado dias depois do seu nascimento e cresceu em um orfanato. Lá, dormia com dezenas de outras crianças com histórias parecidas com a sua. Com sonhos iguais aos seus. Esperavam pelo milagre da adoção, talvez pelo arrependimento dos pais; por dias melhores. Até crescerem. Até descobrirem que esses tais dias melhores não viriam. Aos 18 anos era hora de deixar o orfanato e tentar a vida nas ruas. Na rua por onde todos passam, Ubirajara ficou. Uma história que se repete pelas esquinas, pelos bancos de praça, pelos viadutos de qualquer grande cidade. Uma história que - dentro da realidade social do país - poderia ser até considerada comum. Poderia,se não fosse a história de Ubirajara. Poderia, se fosse verdade.

A esquina

00h10. O jogo da seleção brasileira acabara havia poucos minutos e o fluxo de carros era um pouco maior do que o habitual paraum início de madrugada em uma das esquinas mais nobres do Recife, entre as rua das Pernambucanas e da Amizade, no bairro das Graças. Naquele horário, o único movimento era o dos carros. Dificilmente passaria alguém caminhando pela calçada. E era justamente por isso que Ubirajara estava ali. Naquela esquina, ele passaria a noite. Dormiria. Era o seu endereço. Sua casa. Há 12 anos, ele vive na rua. Era uma criança de 15 anos, perdida. Hoje é um homem de 27 que, finalmente, parece ter encontrado os tais "dias melhores".

Sentando no pequeno batente de uma farmácia que fica fechada entre as 22h e às 6h30, ele começa a contar a sua vida. "Minha história é inacreditável", adianta. Com razão. É tão inacreditável que ele costuma mentir sobre sua origem. Prefere contar para as pessoas a versão que abriu essa reportagem. O drama comum do menino abandonado que cresceu em um orfanato. "Conto isso porque sei que é uma versão mais fácil de ser aceita", confessa Ubiaraja.

Por quase duas horas, ele continuaria contando a sua verdadeira história. Uma espécie de conto de fadas moderno. Aparentemente uma das muitas histórias sobre a miséria de um país e as suas conseqüências trágicas na vida de uma pessoa, na desestruturação de famílias, nas distorções das formas de relacionamento.

O pedaço de papel

Um rato passou a alguns metros e logo desapareceu. Dois meninos vieram pela calçada com garrafas de cola em uma mão e um pedaço de madeira afiado em outra. Sumiram no escuro. A chuva começou a cair. Ubirajara encolheu as pernas e protegeu sua pasta entupida de papéis e suas duas sacolas de plástico. Numa delas, um pouco de comida. Na outra, alguns itens de higiene pessoal. Ele não tem sequer uma escova de dentes. Da pasta, tira um pedaço de papel com marcas de dobras. No alto da página branca, a marca do Banco do Brasil. Um pouco abaixo, o nome completo de Ubirajara e alguns números. Um deles era 136. A quele morador de rua encolhido no batente de uma farmácia havia sido o 136º colocado no concurso do Banco do Brasil.

A família

"Quem diria que aquele retardado seria funcionário do Banco do Brasil?", pergunta Ubirajara, em tom de orgulho. Realmente, ninguém jamais diria que um jovem que viveu 12 anos na rua conseguisse ser aprovado em um concurso público tão disputado. Concursos que se tornaram uma espécie de projeto de futuro para parte significativa da sociedade - alimentando uma verdadeira indústria de cursos preparatórios. Mas o "quem diria" de Ubirajara, na verdade, não era uma pergunta. Era uma resposta para alguns dos seus familiares. Pessoas que sumiram da sua vida desde o dia em que ele resolveu sair de casa. "Essa é a parte da minha história que eu queria esquecer".

00h40. Ubirajara está chorando. Pela primeira e única vez naquela madrugada. "O que eu realmente queria era ter tido minha mãe perto", diz enquanto passa a mão nos olhos vermelhos. O desabafo aconteceu enquanto ele contava a sua infância. Filho de uma garçonete com um PM exonerado, foi deixado de lado pelos dois. Mas não totalmente abandonado - como na história queescolheu contar. Na verdade, o menino foi criado na casa da sua avó materna, junto com mais quatro irmãos, em Paulista. Tinha uma condição de vida precária, mas digna. Pobre, não miserável. "Quando as pessoas sabem que eu tenho pai e mãe ficam revoltadas comigo por eu estar na rua. Me culpam. Ficam me julgando como se eu fosse um maluco ou um rebelde. Como se eu tivesse escolhido isso. Mas não é uma escolha. Você acha que eu não queria estar em uma cama agora?"

As primeiras noites na rua

Ubirajara relata constantes agressões físicas e psicológicas que sofria na casa da avó. De lá veio o termo "retardado", que ele não esquece. Aos 15 anos, costumava fugir de casa. Aos poucos, as fugas eram cada vez mais longas. Cada vez mais sem rumo. Longe de casa, sem dinheiro, começou a dormir pelos cantos. Primeiro, na Avenida Guararapes. Depois, na rampa do Hospital da Restauração. Ele resume essas noites em dois sentimentos: "medo e solidão". Sentimentos que parecem capazes de resumir as piores noites da vida de qualquer pessoa. No caso dele, não eram as piores. Eram todas.

A virada

Ubirajara estava na 6ª série quando saiu de casa. E, nos primeiros anos sem teto, o seu único objetivo era sobreviver. E não há exagero ou qualquer tom heróico nessa afirmação. A vida na rua tem suas regras. Suas leis. O cotidiano das calçadas não permite escolhas. Não permite pudores. Nem princípios. Não podemos esquecer que esta é, antes de mais nada, a história de um morador de rua. E, nesse ponto, por muito tempo, Ubirajara foi só mais um.

Um dos que pediam esmola, um dos que não cortavam o cabelo, dos que vestiam trapos, dos que sentiam fome, dos que precisavam fazer qualquer coisa para comer (neste caso, não se faz necessário detalhar o "qualquer coisa"). Violentado de todas as formas. Noites de culpa. Noites de dor.

Em 2001, o garoto decidiu voltar a estudar. Foi quando iniciou a reaproximação com os livros, as revistas e os jornais: "Tudo que parava na minha mão, eu sempre lia. Acho que esse foi o meu grande diferencial inclusive nos concursos". Estudando nas ruas, Ubirajara passou nas duas provas de supletivo e recebeu o diploma do ensino médio. Ainda assim, continuou freqüentando os colégios. Continua, aliás. Por um só motivo: as merendas.

Preguiçoso?

A reaproximação com os pais ou com a avó nunca aconteceu. Ubirajara manteve contato apenas com os irmãos. Todos tiveram uma vida mais digna. Casaram, formaram família, conseguiram emprego. Em mais de uma década de rua, Ubirajara se acostumou a ser chamado de "preguiçoso" e de "teimoso". "Minha teimosia é que fez com que eu não desistisse dos meus sonhos. Por mais que todo mundo me criticasse, eu continuei fazendo aquilo que eu acreditava", resume.

No ponto de táxi do Mercado da Madalena, onde Ubirajara "morou" por um bom tempo, os taxistas o definem como um "rapaz honesto, que vivia estudando, não gostava de trabalhar e tinha um jeito de abestalhado". Os dias de Ubirajara se resumiam a estudar. Às vezes, nas praças. Às vezes, em bibliotecas públicas. "Não tinha todos os livros, aí ia para a biblioteca, fazia rascunhos, copiava tudo e levava comigo esses papéis para todos os cantos", conta. Ainda leva, na verdade. A tal pasta dele é repleta de anotações. Todos os tipos. Desde a sua mínima contabilidade (vive com algo entre R$ 2 R$ 5 por dia) até um projeto completo para abrir um negócio próprio. "Quero ser nanoempresário. Menor do que micro", diverte-se.

O futuro

A prova do concurso para escriturário do Banco do Brasil tinha 150 questões. Ubirajara acertou 116. Foi o quinto concurso que fez. Havia passado em outros quatro, mas nunca havia sido chamado. No início da semana passada, soube da convocação pela internet - onde vive quase que uma "vida paralela". Tem perfil no Ortkut e participa de dezenas de fóruns "habitados" pelos "concurseiros". É conhecido nesse meio pelo apelido de "Maior Abandonado". Usa uma foto de Charles Chaplin. "Sou viciado. Procuro sempre lugares que tenham computadores públicos. Na internet, as diferenças diminuem, não me sinto distante de ninguém", conta, fazendouma analogia com a sua "invisibilidade" como morador de rua. "Estou aqui nessa esquina todas as noites? Ninguém vem aqui falar comigo. Você veio para me entrevistar. Mas você já tinha sequer me visto aqui?", questiona. A resposta, constrangida, foi "não".

E foi na internet, em um fórum de discussão para "concurseiros", que Ubirajara resolveu expor um drama que vinha lhe consumindo em silêncio desde o dia que soube da convocação. Tinha uma dívida de quase R$ 8 mil por empréstimos que fez há anos. E a regra em órgãos públicos é clara: para a contratação ser efetivada, o candidato não pode ter o nome no SPC ou Serasa. Bastou o relato triste para estimular uma verdadeira corrente de ajuda. Uma mobilização virtual que não demoraria para se tornar real. Um amigo que fez na internet se dispôs a pagar parte da sua dívida. Algo em torno de R$ 3 mil. O restante, o próprio Ubirajara pagará em 60 meses com o seu salário (R$ 954, mas que somando outros benefícios pode chegar quase a R$2.000). Dinheiro suficiente para revolucionar sua vida. Para que os seus sonhos, pela primeira vez, possam ser chamados de "planos".



(Fred Figueiroa //no Diario de Pernambuco,20 de junho de 2008)

sábado, 22 de março de 2008

MANARI E OS DIAS MELHORES


Aqui até o nada serve". Esta frase deu o tom final da reportagem que começou a ser publicada ontem no Diario sobre a cidade de Manari. Quem disse a frase foi a agricultora Teresa Maria dos Santos, de 54 anos. Uma mulher que construiu a sua vida naquele município do Sertão, que só foi emancipado em 1997, fica a 318,4 quilômetros do Recife e que não aparece em nenhuma das sinalizações da estrada. Um lugar perdido, esquecido, imerso em miséria e condições de vida subumanas, que parecia condenado a a ficar para sempre escondido por trás da poeira da areia do único caminho que leva até a cidade. Parecia.

No rastro da poeira dos números levantados pelo censo demográfico do IBGE em 2000, Manari apareceu. Da pior forma possível. No cruzamento de dados elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, a cidade apresentou o mais baixo índice de desenvolvimento humano do país (0,467). Altíssimas taxas de miséria, pobreza, analfabetismo e mortalidade infantil. Péssimos níveis de acesso àsaúde, à educação e ao saneamento básico. Uma esperança de vida de 55,7 anos.

Teresa Maria está com 54. Mas a sua esperança de vida hoje, já não se mede. Esperança é uma palavra que a agricultora cultivou a vida inteira, mas foram raras as vezes que colheu os frutos. Uma vida simples. Sem chances de mudança: "Nunca pude ir para a escola. Minha família toda vivia na enxada e eu comecei a trabalhar na roça aos oito anos". Roça que garante a sua sobrevivência até hoje. "Tudo o que planto é para alimentar a minha família. Às vezes, dá pra sobrar uma coisinha...aí a gente vem vender na feira", diz Teresa - que não revela quanto consegue receber nessas pequenas vendas.

Depois de minutos de conversa, começa a ficar um pouco mais fácil entender o que ela quis dizer com "aqui até o nada serve". O "nada" de hoje, simplesmente, é melhor que o "nada" de ontem. "Vivíamos morrendo de sede aqui. Não tinha médico, remédios, nem escola. Sempre fomos pobres, mas hoje a gente acorda sabendo que vai viver", diz. Sua vida mudou.Pouco, mas mudou. Sua mãe tem 80 anos e uma saúde tranqüila. Viveu além da "esperança" da cidade. Seus quatro filhos reescreveram a história da família e aprenderam a escrever. Todos estão na escola. E Manari aprendeu a lição.

Sombrinhas - São 13h de uma terça-feira e o comércio está fechado na área urbana de Manari. E ficará assim pelo menos até às 15h. Pela rua, poucas pessoas caminham embaixo das suas sombrinhas para se proteger do sol. Aquele sol que se imagina de uma cidade do Sertão. Nas sombras das árvores, homens conversam embaixo dos seus chapéus. Passa um carro sem carroceria. Passa um porco. Dois homens estão quebrando o calçamento. Na verdade, construindo um futuro que demorou demais para chegar. Água encanada e saneamento básico. Dias melhores. Duas meninas com sombrinhas cor de rosa e cadernos na mão conversam baixinho enquanto seguem para a escola. Sorriem para a câmera.

Do outro lado da rua, uma pequena casa de muro verde e azul. Porta e janela. Telhas velhas. Na fachada, letras pretas e vermelhas avisam: AGÊNCIA DE VIAGENS. MANARI A SÃO PAULO. Por muitos anos, ali estava a saída. A saída de Manari. Se não a única, certamente a mais tentadora e, por isso mesmo, a mais comum. Todas as quintas, parte o ônibus. Clandestino. A passagem é R$ 180,00. A viagem, se tudo der certo, de dois dias. Conversando com as pessoas pelas ruas, é praticamente impossível encontrar alguém que não tenha ao menos um familiar em São Paulo.

"Todas as pessoas mais velhas têm família lá. Algumas bem estruturadas. A maioria, no entanto, ainda passa muitas dificuldades", conta Rogério Silva, 25 anos e comerciante na feira do município. Ele nunca teve um emprego com carteira assinada. Na verdade, qualquer tipo de emprego - que não seja ligado à Prefeitura - é algo praticamente inexistente ali. O pouco dinheiro que circula no tímido comércio da cidade é quase todo proveniente das aposentadorias e do funcionalismo público.

A condição de Rogério é até uma exceção. Vende verduras na feira e consegue tirar até R$ 350,00 por mês. Dinheiro suficiente para sustentar ainda a sua esposa e o filho de um ano e seis meses. Milagres...necessidades de Manari. Rogério já foi uma vez para São Paulo. Voltou e não tem planos para entrar de novo no ônibus das quintas-feiras.

Ele ficou e viu a cidade começar a mudar nos últimos dois anos. Debaixo dos seus pés, estão sendo construídos o encanamento para a água e a estrutura para a implantação do sistema de esgoto. Cisternas foram espalhadas pelos sítios na zona rural. A água da chuva consegue ser reaproveitada. Serviços básicos que, nesse caso, têm um significado muito maior. Falam em desenvolvimento. Pela primeira vez, como se este fosse realmente possível. As duas escolas foram reformadas. Os alunos agora podem completar o ensino médio sem ter que sair da cidade. O hospital teve as instalações recuperadas e, o mais importante, todos os dias, existe pelo menos um médico de plantão.

Desvio - "Sem a água encanada e o saneamento, não tem nem como imaginar um empresário de fora vir aqui, investir, montar uma fábrica, um hotel...", explica Lucas Bezerra, 28 anos, assessor do prefeito Otaviano Martins - que mora na cidade vizinha e quando está em Manari acaba atraindo uma pequena multidão para a frente da Prefeitura. Pessoas que precisam e pedem ajuda. Dinheiro, cestas básicas, remédios, materiais de construção. Otaviano costuma atendê-las. Um desvio de função, é verdade. Mas um tanto compreensível para quem está ali.

"Depois da cidade ter aparecido como a última colocada no IDH do país, os olhos das pessoas se voltaram pra cá. Todos passaram a ajudar. Foi algo ruim que trouxe coisas boas", resume Lucas - que, assim como toda a cidade, espera um futuro melhor.

O jornalismo às vezes tem uma lógica perversa. Vendo a miséria sumindo aos poucosno retrovisor, fica a certeza de que, no próximo censo do IBGE, aquela não será mais a cidade com pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil e certamente, não estará mais na rota das equipes reportagens - que seguem ávidas os rumos que as pesquisas e análises sociais revelam. Manari desaparece na poeira.

Fred Figueiroa/ publicada no Diario de Pernambuco no dia 3 de setembro de 2007 / Com fotos de Juliana Leitão

quinta-feira, 13 de março de 2008

MANARI E O MILAGRE DA MAÇÃ

APRESENTAÇÃO:
Numa armação enferrujada, deveria estar a placa que avisa o início - ou pelo menos a proximidade da cidade de Manari. setenta e seis quilômetros de asfalto e buracos da PE-270 ficaram para trás. Mais de 300 km do Recife. Na estrada que leva do litoral ao Sertão de Pernambuco, incontáveis placas verdes anunciam cidades e distâncias em letras brancas. Manari não aparece em nenhuma delas. Talvez por esquecimento. Talvez por não ser um lugar para onde alguém pense em ir. Distante demais da capital e de qualquer outro pólo de desenvolvimento do interior. Não existem razões econômicas ou culturais que levem alguém até ali. Até aquela armação metálica vazia. Que funciona apenas como uma moldura enferrujada para um céu quase sempre azul. Que avisa a chegada a lugar nenhum.

O silêncio na estrada reforça essa sensação de distância. De isolamento. Geográfico e social. Ouve-se o barulho de um motor. Ainda longe, uma moto se aproxima. Passa veloz. Desaparece. Segue pela estrada. Manari não segue. O asfalto termina a alguns metros dali. Em um trevo com mato crescendo por baixo do concreto. É de areia e poeira o caminho que resta pela frente. Vinte e cinco quilômetros que se arrastam lentamente em uma hora de percurso até a área urbana do município.

Pela areia, homens de chapéu puxando cavalos e carroças deixam suas pegadas. Andam lentamente. São trabalhadores rurais. Dos 13 mil habitantes de Manari, quase dez mil vivem na área dos sítios. A agricultura é de subsistência. Pequenas plantações de feijão e mandioca surgem no cenário predominantemente verde pelas chuvas da época. Bodes, cavalos, bois, guinés e urubus cortam o caminho.

A área urbana de Manari se aproxima. Os paralelepípedos avisam o início da cidade. Duas placas de propaganda de obras públicas saltam aos olhos: "Luz para Todos - investimento de R$212.811,25". "Pavimentação das vias públicas - investimento: R$103.974,99". Esta última, aliás, explica os paralelepípedos. Até bem pouco tempo, as ruas eram de barro. Seria uma ironia quase perversa esperar por placas dotipo: "Bem-vindos a Manari". Aqui começa a cidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil.


O MILAGRE DA MAÇÃ
Uma maçã. Um canivete. Uma precisão geométrica. A lâmina desenha quatro cortes que dividem a fruta vermelha em oito pedacinhos aparentemente iguais. Olhos atentos acompanham o movimento da lâmina. Sete pares de olhos. Sete crianças que vão estendendo suas mãos de unhas sujas. Vitória é a mais nova. Tem dois anos. Pega sua parte na maçã, leva à boca e dá uma pequena mordida. Demorará alguns minutos até comer tudo. Seus irmãos mais velhos repetem o gesto. Um a um, os pedacinhos vão desaparecendo. Manoel tem 15 anos. É o mais velho. O tempo escrito nas suas mãos parece andar muito mais rápido. Ele não quis sua parte. O homem que cortara a maçã insistiu: "Guarde para comer mais tarde". Manoel cedeu. O "mais tarde" não demorou três minutos.

Gildo é o motorista da equipe de reportagem do Diario que foi até Manari. Enquanto a mãe das sete crianças mostrava os quatro cômodos apertados, sujos e escuros da pequena casa em que eles vivem - na zona rural de Manari -, desviei os olhos para o lado de fora. Na sombra de um pinheiro infrutífero, Gildo estava cercado pelos meninos e meninas, com a pequena faca nas mãos, operando aquele que seria o "milagre da maçã". Uma cena espontânea que reflete um sentimento comum para quem chega até ali: é difícil não se envolver com a realidade de Manari.

Dona Aneci tem 40 anos. O corpo franzino revela fraqueza. Recém-operada de uma ligação de trompas, anda muito devagar, apoiando-se nas paredes. A voz, cansada, não desperdiça palavras: "Não consigo mais trabalhar", lamenta. Aneci nunca foi para a escola e começou a lida no campo aos oito anos de idade. Aos 15, estava casada e grávida pela primeira vez. Ainda teria outras 20 gestações pela frente. Perdeu seis delas e teve 15 filhos. Cinco deles morreram nos primeiros anos de vida vítimas da desnutrição. Os outros dez resistem como podem. Os três mais velhos pegaram o ônibus para São Paulo. Nunca conseguiram um emprego fixo, vivem dos "bicos" na cidade grande e nunca puderam mandar dinheiro para casa.

Os sete que ficaram com a mãe esperampor dias melhores. Uma espera que se equilibra no limite extremo da sobrevivência. Uma bacia de metal com farinha de mandioca e uns pequenos pedaços de carne seca pendurados em um barbante era todo o estoque de comida que existia na casa. Dinheiro praticamente não existe ali. Aneci recebe apenas R$ 95 de Bolsa Família.

A alimentação depende diretamente do leite doado pelo governo e da agricultura de subsistência. A família planta feijão e mandioca nos arredores de casa. Mas a chuva nem sempre ajuda. E a última colheita foi toda perdida. "Tem dias que não tem o que botar na panela. Só a farinha misturada com água". Desesperado, o marido de Aneci também foi embora para São Paulo desde fevereiro. "Da última vez, ele me falou que pelo jeito que estão as coisas por lá, vai ter que voltar a pé para casa".

As lágrimas que pesam nos olhos de Aneci enquanto relata a sua vida dispensariam todos os números e análises do Censo do IBGE e do Atlas do Desenvolvimento Humano. Os R$ 30,43 de renda per capita; os 89,9% de pobres; os 63,9% de adultos analfabetos; a escolaridade média de 1,3 anos; a morte antes dos cinco anos de 120 crianças para cada mil nascidas.

Toda a miséria está ali. Na falta de comida; na necessidade de remédios; nos retalhos de colchão velho espalhados pelo chão de barro onde as crianças dormem; na falta de um banheiro (os banhos são na cisterna e o resto, no mato mesmo). O pior lugar para se viver é aquele em que sequer podemos chamar a existência de vida. Mas os olhos de quem passa não enxergam a mesma realidade dos de quem fica.

Um sorriso - "A vida hoje está muito melhor", garante Aneci - tomando por base algo que parece invisível para quem chega ali pela primeira vez. Como? Onde? Por quê? Ela então começa a explicar o que mudou nos últimos anos. O acesso à assistência médica, a cisterna que junta água no quintal de casa, a multimistura que evita a desnutrição infantil, a escola que educa os filhos#

"Meus filhos que morreram não tinham médico, nem alimento. Hoje, os meninos dificilmente teriam morrido. Nunca mais ouvi falar de uma criança que tenha morrido doente ou desnutrida por aqui", relata Aneci.

Manoel, 15 anos e aluno da 1º ano do ensino médio , assumiu precocemente a função de "homem da casa" e lembra com um sorriso infantil das longas caminhadas em busca de água: "Saíamos ainda de madrugada. A gente tinha que andar umas três horas para ir, encher os baldes e voltar. Todos os dias...". Hoje, usa esse tempo plantando feijão. Está sempre dando uma olhada na terra. Diz que vai colher três sacos neste mês. Difícil foi convencer Manoel a tirar a foto ao lado da família. Queria colocar a "roupa social" para ser fotografado.

Grandes mudanças. Pequenos milagres. Feitos com a mesma essência daquela da maçã. Quando o "estar" se transforma em "integrar". O "dividir", em "multiplicar". E foi assim que o fato de ter sido considerada a pior entre as 5.507 cidades do Brasil (tomando por base os dados colhidos no Censo do IBGE de 2000 e interpretados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano) acabou se tornando uma espécie de grito de socorro. O país - poder público e sociedade civil - ouviu e descobriu Manari. A cidade que as placas não anunciam, que a miséria não deixava existir. Um lugar onde não nascem maçãs.


(Fred Figueiroa /Diario de Pernambuco / 2 de setembro de 2007 / Com fotos de Juliana Leitão)

Continua amanhã:

"Aqui até o nada serve". A frase é de Teresa Maria dos Santos. Agricultora de 54 anos. Difícil entender onde ela quis chegar. Diante da reação surpresa de quem a entrevistava, ela reforça sua teoria sobre o "nada" e a sua cidade: "...e não serve, não?" Que lugar é esse onde até o "nada" tem a sua utilidade? Que lugar é esse em que os índices sociais revelam uma miséria mais perversa do que aquela que habita os grandes centros urbanos ou as extremidades daquele mesmo Sertão? Mais estranho ou surpreendente é ver que a frase melancólica de Teresa vem acompanhada de um sorriso. De onde vem esse sorriso em um rosto de tantas marcas? Desenhado com traços de alívio e mais um pouquinho de esperança. Esperança, a palavra do amanhã. Da reportagem de amanhã. Quando tudo começará a mudar...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

A ESCOLHA DE SÍLVIO


1. O lead

Na faculdade de jornalismo, uma das lições básicas diz que toda reportagem deve, logo no início, responder a seis questões fundamentais: Quem? O quê? Quando? Onde? Como ? Por quê ? Também é, teoricamente, uma regra que os textos devem ser descritivos, informativos, quase impessoais. E, por isso, o repórter deve evitar sempre transparecer opiniões ou sentimentos. Sendo assim, esta talvez não seja uma reportagem. É só uma história que deve ser contada. E que não poderia ser contada de outra forma.


Quem? Sílvio, 48 anos.

O quê? Vive na rua.

Quando? Há exatamente 10 anos.

Onde? Em qualquer rua do Grande Recife.

Como? Andando sem destino, pedindo esmola, consumindo drogas, procurando um lugar seguro pra dormir.

Por quê ? Boa pergunta. "Por quê ?"


II. O reencontro


Sílvio estava sentado em um canteiro que separa as duas faixas da avenida Mário Melo, em Santo Amaro, no Recife. A camisa de propaganda, desbotada e apertada. A calça encardida, curta. Nos pés, o que sobrou de um chinelo. Ele lia uma jornalde dias atrás. O tempo, para ele, tem outro ritmo, outra dimensão. Os dias seguintes nunca trazem surpresas ou mudanças. Apenas se arrastam numa rotina que faria com que quase todas as outras rotinas parecessem mais suportáveis.


Ele acorda assim que o dia amanhece, caminha por aí, consegue uns trocados ou, até mesmo, um resto de comida para almoçar; depois, anda mais um pouco, tenta umas esmolas, algo que garanta o pão e o café da noite, um cigarro, até encontrar um lugar seguro para dormir. Foi assim ontem, será assim amanhã.


Naquele dia, era pouco mais de 14h e Sílvio já tinha conseguido o seu primeiro objetivo: Almoçou "um suco e um sanduíche". Depois, caminhou até ali. Na Mário Melo. Sentou num batente entre as plantas para descansar. Trazia no bolso de trás da calça páginas de um jornal que catou em algum lugar. Notícias de um mundo distante. De um mundo que ele não se sente presente. Que passa rápido nos carros da avenida.


Eu estava em um desses carros. E aquela não era a primeira vez que eu via Sílvio.


III. O encontro


Era 1997. No portão da garagem do prédio, sob papelões e pedaços de roupa suja, vi que havia um homem. Para tirar o carro, precisava pedir que ele saísse. Então, conheci Sílvio. E ainda o veria muitas e muitas outras vezes ali. Olhares desconfiados. Conversas rápidas. Uns pães. Uns reais. Umas camisas que já não serviam.


Sílvio é um homem de poucas palavras. Não vende miséria. Não usa sua história para chamar a atenção.


IV. A entrevista


Enquanto o olhava por trás da película escura no vidro do carro, foi inevitável uma retrospectiva dessa última década. Uma viagem no tempo particular e social. Universidade, estágios, emprego, reportagens...Dos 17 aos 27 anos. E Sílvio ali, carregando seus trapos. A mesma imagem de dez anos atrás. Como se toda década tivesse passado em um único dia.


Sentei ao seu lado.


- "Você era bem mais novo...", lembrou Sílvio, sem usar os números para contar o tempo.


- "Dez anos", confirmei, com a precisão matemática.


Uma década depois, a relação de "ex-vizinhos" (eu, no 1º andar; e ele no portão) se adapta ao aprofundamento necessário da relação jornalista/personagem. Só então, pela primeira vez, perguntei como Sílvio foi parar na rua. Teria crescido assim? Teria família? Teria tido escolha?


V. A história


"Fui para a rua em 1997. Saí de casa porque não parava de brigar. Bebia muito e fumava maconha. Só fazia discutir quando chegava em casa", conta Sílvio, começando a revelar a sua história e, com ela, mais um retrato da realidade social brasileira.


A vida de um homem diante da pobreza, da estagnação social, da marginalização, da violência, do tráfico de drogas e do conformismo. Tudo isso entrelaçado. São conseqüências e não coincidências.


Sílvio nasceu em 1959. Cresceu no bairro de Santo Amaro, dentro da estrutura de uma família pobre, mas não miserável. O pai era funcionário público. A mãe, ficava em casa cuidando dele e dos seus dois irmãos e três irmãs. Estudou até à 8ª série. Deixou o colégio para começar a trabalhar. Conseguiu emprego na construção civil. Depois, virou zelador. Outros tempos. De bolso cheio e cabeça vazia. Outros mundos apareceram diante do garoto Sílvio: diversão regada à droga e álcool. Diversão que virou vício. "Todos os dias eu bebia. Todos".


Não demorou para perder o emprego e todas as chances de recomeçar que, por um tempo, ainda viriam. Começou a fase de isolamento. De distanciamento. "Todos da minha família me falavam para eu não entrar nessa vida", relata, em tom seco, sem melancolia ou qualquer demonstração de arrependimento.


VI. A escolha


O rompimento com a família abriu as portas da rua para Sílvio. A vida se resumia a uma existência minimalista: conseguir apenas o dinheiro necessário para beber, comprar drogas e não morrer de fome. "Mas depois de uma semana na rua, você já não consegue mais nenhum emprego. Fica sujo, sem uma aparência boa. Ninguém quer nem olhar para você", diz com uma consciência assustadora.


Ali, parece claro que Sílvio escolheu o próprio caminho. Os irmãos hoje estão casados e têm uma vida, ao menos, digna. Umé funcionário dos Correios. O outro, pedreiro. Uma irmã é balconista. As outras, donas-de-casa. Todos tiveram, teoricamente, as mesmas oportunidades.


O homem das ruas não volta pra casa. Não visita os irmãos nem os pais. Mas, inevitavelmente, já os encontrou por aí: "Eles me dizem para eu consertar minha vida. Para parar de andar sujo. E eu sempre digo que vou ver se me conserto..."


Mas será mesmo que envelhecer nas ruas foi só uma escolha? Em dez anos, nenhum programa social encontrou Sílvio. "Do governo, não espero nada. Acho que, pelo governador, eu não mudo nunca", diz, antes de falar um pouco sobre política. Um pouco antes, um homem passara puxando uma carroça e cumprimentou Sílvio: "Boa tarde, professor".


Sílvio ri e explica que, pelas ruas, muitos o chamam de professor. "Não sei porquê...", diz. Mas a explicação não parece tão difícil. Na realidade das ruas, ter estudado até à 8ª série, é algo que está longe de ser comum. Assim como parar algumas horas por dia para ler um jornal velho.


VII. A prisão


Quando escolheu viver nas ruas, Sílvio buscava a liberdade e descobriu a prisão. "Moro há dez anos na rua, conheci muitos como eu e nunca vi alguém voltar para a sociedade", atesta. Uma prisão solitária. "Nunca casei nem tive filhos. Só posso cuidar de mim". Os primeiros dias como sem-teto foram de medo. Ele não sabia onde dormir, onde se proteger, onde fazer as necessidades básicas. "Tinha medo de dormir e ser espancado. Quem está na rua, sabe que isso acontece muito durante as noites", conta, sem conseguir achar uma resposta para o motivo das agressões.


Mas a violência está totalmente incorporada ao cotidiano das ruas. "Pensei em roubar várias vezes, mas faltou coragem. Na hora de agir, não consegui", conta Sílvio que, desde então, aprendeu a se contentar com as sobras da sociedade. Sociedade aliás que ele sempre se refere como se não fizesse parte dela.


Sem passado, nem destino, ele começou a cruzar a cidade em suas caminhadas. Nessas idas e vindas, perdeu os documentos e - literalmente - foi deixando deexistir. "Sei que não vou sair da rua. Não me acostumaria com a vida outra vez", diz, justificando o fato de não tirar uma nova certidão de nascimento ou identidade: "Isso me custaria uns R$ 30 ou R$40 e nunca tenho tanto dinheiro. E mesmo se tivesse..."


VII. A conclusão


Sílvio abriu mão dos seus documentos, do seu sobrenome, da sua família, do seu passado e do futuro. Sílvio é o Brasil que não muda.


O Brasil dos miseráveis. Da estagnação entre classes sociais. Dos jovens que abandonam a escola para trabalhar. Do tráfico de drogas que escorre livremente nas veias da cidade. Da venda livre de bebidas alcóolicas para menores. Da burocracia pública para existir. Dos invisíveis. Do curto alcance dos programas sociais. Dos esquecidos. Do desemprego crônico. Da violência descontrolada. Da falta de esperança. Do descrédito nos governantes. Dos jornais velhos com as mesmas notícias do de hoje.


Sílvio poderia ser uma notícia desses velhos jornais. O mendigo espancado. O índio queimado. O adolescente que roubou no sinal de trânsito. O traficante que fugiu da prisão. O assassino brutal.


Mas ele preferiu não existir.


Essa foi a sua escolha.


Por isso que a história de Sílvio não cabe em um lead. Não é uma notícia. É só uma história que precisava ser contada.




Fred Figueiroa (Diario de Pernambuco, 25 de Julho de 2007 / Com foto de Edvaldo Rodrigues).