1. O lead
Na faculdade de jornalismo, uma das lições básicas diz que toda reportagem deve, logo no início, responder a seis questões fundamentais: Quem? O quê? Quando? Onde? Como ? Por quê ? Também é, teoricamente, uma regra que os textos devem ser descritivos, informativos, quase impessoais. E, por isso, o repórter deve evitar sempre transparecer opiniões ou sentimentos. Sendo assim, esta talvez não seja uma reportagem. É só uma história que deve ser contada. E que não poderia ser contada de outra forma.
Quem? Sílvio, 48 anos.
O quê? Vive na rua.
Quando? Há exatamente 10 anos.
Onde? Em qualquer rua do Grande Recife.
Como? Andando sem destino, pedindo esmola, consumindo drogas, procurando um lugar seguro pra dormir.
Por quê ? Boa pergunta. "Por quê ?"
II. O reencontro
Sílvio estava sentado em um canteiro que separa as duas faixas da avenida Mário Melo, em Santo Amaro, no Recife. A camisa de propaganda, desbotada e apertada. A calça encardida, curta. Nos pés, o que sobrou de um chinelo. Ele lia uma jornalde dias atrás. O tempo, para ele, tem outro ritmo, outra dimensão. Os dias seguintes nunca trazem surpresas ou mudanças. Apenas se arrastam numa rotina que faria com que quase todas as outras rotinas parecessem mais suportáveis.
Ele acorda assim que o dia amanhece, caminha por aí, consegue uns trocados ou, até mesmo, um resto de comida para almoçar; depois, anda mais um pouco, tenta umas esmolas, algo que garanta o pão e o café da noite, um cigarro, até encontrar um lugar seguro para dormir. Foi assim ontem, será assim amanhã.
Naquele dia, era pouco mais de 14h e Sílvio já tinha conseguido o seu primeiro objetivo: Almoçou "um suco e um sanduíche". Depois, caminhou até ali. Na Mário Melo. Sentou num batente entre as plantas para descansar. Trazia no bolso de trás da calça páginas de um jornal que catou em algum lugar. Notícias de um mundo distante. De um mundo que ele não se sente presente. Que passa rápido nos carros da avenida.
Eu estava em um desses carros. E aquela não era a primeira vez que eu via Sílvio.
III. O encontro
Era 1997. No portão da garagem do prédio, sob papelões e pedaços de roupa suja, vi que havia um homem. Para tirar o carro, precisava pedir que ele saísse. Então, conheci Sílvio. E ainda o veria muitas e muitas outras vezes ali. Olhares desconfiados. Conversas rápidas. Uns pães. Uns reais. Umas camisas que já não serviam.
Sílvio é um homem de poucas palavras. Não vende miséria. Não usa sua história para chamar a atenção.
IV. A entrevista
Enquanto o olhava por trás da película escura no vidro do carro, foi inevitável uma retrospectiva dessa última década. Uma viagem no tempo particular e social. Universidade, estágios, emprego, reportagens...Dos 17 aos 27 anos. E Sílvio ali, carregando seus trapos. A mesma imagem de dez anos atrás. Como se toda década tivesse passado em um único dia.
Sentei ao seu lado.
- "Você era bem mais novo...", lembrou Sílvio, sem usar os números para contar o tempo.
- "Dez anos", confirmei, com a precisão matemática.
Uma década depois, a relação de "ex-vizinhos" (eu, no 1º andar; e ele no portão) se adapta ao aprofundamento necessário da relação jornalista/personagem. Só então, pela primeira vez, perguntei como Sílvio foi parar na rua. Teria crescido assim? Teria família? Teria tido escolha?
V. A história
"Fui para a rua em 1997. Saí de casa porque não parava de brigar. Bebia muito e fumava maconha. Só fazia discutir quando chegava em casa", conta Sílvio, começando a revelar a sua história e, com ela, mais um retrato da realidade social brasileira.
A vida de um homem diante da pobreza, da estagnação social, da marginalização, da violência, do tráfico de drogas e do conformismo. Tudo isso entrelaçado. São conseqüências e não coincidências.
Sílvio nasceu em 1959. Cresceu no bairro de Santo Amaro, dentro da estrutura de uma família pobre, mas não miserável. O pai era funcionário público. A mãe, ficava em casa cuidando dele e dos seus dois irmãos e três irmãs. Estudou até à 8ª série. Deixou o colégio para começar a trabalhar. Conseguiu emprego na construção civil. Depois, virou zelador. Outros tempos. De bolso cheio e cabeça vazia. Outros mundos apareceram diante do garoto Sílvio: diversão regada à droga e álcool. Diversão que virou vício. "Todos os dias eu bebia. Todos".
Não demorou para perder o emprego e todas as chances de recomeçar que, por um tempo, ainda viriam. Começou a fase de isolamento. De distanciamento. "Todos da minha família me falavam para eu não entrar nessa vida", relata, em tom seco, sem melancolia ou qualquer demonstração de arrependimento.
VI. A escolha
O rompimento com a família abriu as portas da rua para Sílvio. A vida se resumia a uma existência minimalista: conseguir apenas o dinheiro necessário para beber, comprar drogas e não morrer de fome. "Mas depois de uma semana na rua, você já não consegue mais nenhum emprego. Fica sujo, sem uma aparência boa. Ninguém quer nem olhar para você", diz com uma consciência assustadora.
Ali, parece claro que Sílvio escolheu o próprio caminho. Os irmãos hoje estão casados e têm uma vida, ao menos, digna. Umé funcionário dos Correios. O outro, pedreiro. Uma irmã é balconista. As outras, donas-de-casa. Todos tiveram, teoricamente, as mesmas oportunidades.
O homem das ruas não volta pra casa. Não visita os irmãos nem os pais. Mas, inevitavelmente, já os encontrou por aí: "Eles me dizem para eu consertar minha vida. Para parar de andar sujo. E eu sempre digo que vou ver se me conserto..."
Mas será mesmo que envelhecer nas ruas foi só uma escolha? Em dez anos, nenhum programa social encontrou Sílvio. "Do governo, não espero nada. Acho que, pelo governador, eu não mudo nunca", diz, antes de falar um pouco sobre política. Um pouco antes, um homem passara puxando uma carroça e cumprimentou Sílvio: "Boa tarde, professor".
Sílvio ri e explica que, pelas ruas, muitos o chamam de professor. "Não sei porquê...", diz. Mas a explicação não parece tão difícil. Na realidade das ruas, ter estudado até à 8ª série, é algo que está longe de ser comum. Assim como parar algumas horas por dia para ler um jornal velho.
VII. A prisão
Quando escolheu viver nas ruas, Sílvio buscava a liberdade e descobriu a prisão. "Moro há dez anos na rua, conheci muitos como eu e nunca vi alguém voltar para a sociedade", atesta. Uma prisão solitária. "Nunca casei nem tive filhos. Só posso cuidar de mim". Os primeiros dias como sem-teto foram de medo. Ele não sabia onde dormir, onde se proteger, onde fazer as necessidades básicas. "Tinha medo de dormir e ser espancado. Quem está na rua, sabe que isso acontece muito durante as noites", conta, sem conseguir achar uma resposta para o motivo das agressões.
Mas a violência está totalmente incorporada ao cotidiano das ruas. "Pensei em roubar várias vezes, mas faltou coragem. Na hora de agir, não consegui", conta Sílvio que, desde então, aprendeu a se contentar com as sobras da sociedade. Sociedade aliás que ele sempre se refere como se não fizesse parte dela.
Sem passado, nem destino, ele começou a cruzar a cidade em suas caminhadas. Nessas idas e vindas, perdeu os documentos e - literalmente - foi deixando deexistir. "Sei que não vou sair da rua. Não me acostumaria com a vida outra vez", diz, justificando o fato de não tirar uma nova certidão de nascimento ou identidade: "Isso me custaria uns R$ 30 ou R$40 e nunca tenho tanto dinheiro. E mesmo se tivesse..."
VII. A conclusão
Sílvio abriu mão dos seus documentos, do seu sobrenome, da sua família, do seu passado e do futuro. Sílvio é o Brasil que não muda.
O Brasil dos miseráveis. Da estagnação entre classes sociais. Dos jovens que abandonam a escola para trabalhar. Do tráfico de drogas que escorre livremente nas veias da cidade. Da venda livre de bebidas alcóolicas para menores. Da burocracia pública para existir. Dos invisíveis. Do curto alcance dos programas sociais. Dos esquecidos. Do desemprego crônico. Da violência descontrolada. Da falta de esperança. Do descrédito nos governantes. Dos jornais velhos com as mesmas notícias do de hoje.
Sílvio poderia ser uma notícia desses velhos jornais. O mendigo espancado. O índio queimado. O adolescente que roubou no sinal de trânsito. O traficante que fugiu da prisão. O assassino brutal.
Mas ele preferiu não existir.
Essa foi a sua escolha.
Por isso que a história de Sílvio não cabe em um lead. Não é uma notícia. É só uma história que precisava ser contada.
Fred Figueiroa (Diario de Pernambuco, 25 de Julho de 2007 / Com foto de Edvaldo Rodrigues).