sábado, 22 de março de 2008
MANARI E OS DIAS MELHORES
Aqui até o nada serve". Esta frase deu o tom final da reportagem que começou a ser publicada ontem no Diario sobre a cidade de Manari. Quem disse a frase foi a agricultora Teresa Maria dos Santos, de 54 anos. Uma mulher que construiu a sua vida naquele município do Sertão, que só foi emancipado em 1997, fica a 318,4 quilômetros do Recife e que não aparece em nenhuma das sinalizações da estrada. Um lugar perdido, esquecido, imerso em miséria e condições de vida subumanas, que parecia condenado a a ficar para sempre escondido por trás da poeira da areia do único caminho que leva até a cidade. Parecia.
No rastro da poeira dos números levantados pelo censo demográfico do IBGE em 2000, Manari apareceu. Da pior forma possível. No cruzamento de dados elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, a cidade apresentou o mais baixo índice de desenvolvimento humano do país (0,467). Altíssimas taxas de miséria, pobreza, analfabetismo e mortalidade infantil. Péssimos níveis de acesso àsaúde, à educação e ao saneamento básico. Uma esperança de vida de 55,7 anos.
Teresa Maria está com 54. Mas a sua esperança de vida hoje, já não se mede. Esperança é uma palavra que a agricultora cultivou a vida inteira, mas foram raras as vezes que colheu os frutos. Uma vida simples. Sem chances de mudança: "Nunca pude ir para a escola. Minha família toda vivia na enxada e eu comecei a trabalhar na roça aos oito anos". Roça que garante a sua sobrevivência até hoje. "Tudo o que planto é para alimentar a minha família. Às vezes, dá pra sobrar uma coisinha...aí a gente vem vender na feira", diz Teresa - que não revela quanto consegue receber nessas pequenas vendas.
Depois de minutos de conversa, começa a ficar um pouco mais fácil entender o que ela quis dizer com "aqui até o nada serve". O "nada" de hoje, simplesmente, é melhor que o "nada" de ontem. "Vivíamos morrendo de sede aqui. Não tinha médico, remédios, nem escola. Sempre fomos pobres, mas hoje a gente acorda sabendo que vai viver", diz. Sua vida mudou.Pouco, mas mudou. Sua mãe tem 80 anos e uma saúde tranqüila. Viveu além da "esperança" da cidade. Seus quatro filhos reescreveram a história da família e aprenderam a escrever. Todos estão na escola. E Manari aprendeu a lição.
Sombrinhas - São 13h de uma terça-feira e o comércio está fechado na área urbana de Manari. E ficará assim pelo menos até às 15h. Pela rua, poucas pessoas caminham embaixo das suas sombrinhas para se proteger do sol. Aquele sol que se imagina de uma cidade do Sertão. Nas sombras das árvores, homens conversam embaixo dos seus chapéus. Passa um carro sem carroceria. Passa um porco. Dois homens estão quebrando o calçamento. Na verdade, construindo um futuro que demorou demais para chegar. Água encanada e saneamento básico. Dias melhores. Duas meninas com sombrinhas cor de rosa e cadernos na mão conversam baixinho enquanto seguem para a escola. Sorriem para a câmera.
Do outro lado da rua, uma pequena casa de muro verde e azul. Porta e janela. Telhas velhas. Na fachada, letras pretas e vermelhas avisam: AGÊNCIA DE VIAGENS. MANARI A SÃO PAULO. Por muitos anos, ali estava a saída. A saída de Manari. Se não a única, certamente a mais tentadora e, por isso mesmo, a mais comum. Todas as quintas, parte o ônibus. Clandestino. A passagem é R$ 180,00. A viagem, se tudo der certo, de dois dias. Conversando com as pessoas pelas ruas, é praticamente impossível encontrar alguém que não tenha ao menos um familiar em São Paulo.
"Todas as pessoas mais velhas têm família lá. Algumas bem estruturadas. A maioria, no entanto, ainda passa muitas dificuldades", conta Rogério Silva, 25 anos e comerciante na feira do município. Ele nunca teve um emprego com carteira assinada. Na verdade, qualquer tipo de emprego - que não seja ligado à Prefeitura - é algo praticamente inexistente ali. O pouco dinheiro que circula no tímido comércio da cidade é quase todo proveniente das aposentadorias e do funcionalismo público.
A condição de Rogério é até uma exceção. Vende verduras na feira e consegue tirar até R$ 350,00 por mês. Dinheiro suficiente para sustentar ainda a sua esposa e o filho de um ano e seis meses. Milagres...necessidades de Manari. Rogério já foi uma vez para São Paulo. Voltou e não tem planos para entrar de novo no ônibus das quintas-feiras.
Ele ficou e viu a cidade começar a mudar nos últimos dois anos. Debaixo dos seus pés, estão sendo construídos o encanamento para a água e a estrutura para a implantação do sistema de esgoto. Cisternas foram espalhadas pelos sítios na zona rural. A água da chuva consegue ser reaproveitada. Serviços básicos que, nesse caso, têm um significado muito maior. Falam em desenvolvimento. Pela primeira vez, como se este fosse realmente possível. As duas escolas foram reformadas. Os alunos agora podem completar o ensino médio sem ter que sair da cidade. O hospital teve as instalações recuperadas e, o mais importante, todos os dias, existe pelo menos um médico de plantão.
Desvio - "Sem a água encanada e o saneamento, não tem nem como imaginar um empresário de fora vir aqui, investir, montar uma fábrica, um hotel...", explica Lucas Bezerra, 28 anos, assessor do prefeito Otaviano Martins - que mora na cidade vizinha e quando está em Manari acaba atraindo uma pequena multidão para a frente da Prefeitura. Pessoas que precisam e pedem ajuda. Dinheiro, cestas básicas, remédios, materiais de construção. Otaviano costuma atendê-las. Um desvio de função, é verdade. Mas um tanto compreensível para quem está ali.
"Depois da cidade ter aparecido como a última colocada no IDH do país, os olhos das pessoas se voltaram pra cá. Todos passaram a ajudar. Foi algo ruim que trouxe coisas boas", resume Lucas - que, assim como toda a cidade, espera um futuro melhor.
O jornalismo às vezes tem uma lógica perversa. Vendo a miséria sumindo aos poucosno retrovisor, fica a certeza de que, no próximo censo do IBGE, aquela não será mais a cidade com pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil e certamente, não estará mais na rota das equipes reportagens - que seguem ávidas os rumos que as pesquisas e análises sociais revelam. Manari desaparece na poeira.
Fred Figueiroa/ publicada no Diario de Pernambuco no dia 3 de setembro de 2007 / Com fotos de Juliana Leitão
quinta-feira, 13 de março de 2008
MANARI E O MILAGRE DA MAÇÃ
O silêncio na estrada reforça essa sensação de distância. De isolamento. Geográfico e social. Ouve-se o barulho de um motor. Ainda longe, uma moto se aproxima. Passa veloz. Desaparece. Segue pela estrada. Manari não segue. O asfalto termina a alguns metros dali. Em um trevo com mato crescendo por baixo do concreto. É de areia e poeira o caminho que resta pela frente. Vinte e cinco quilômetros que se arrastam lentamente em uma hora de percurso até a área urbana do município.
Pela areia, homens de chapéu puxando cavalos e carroças deixam suas pegadas. Andam lentamente. São trabalhadores rurais. Dos 13 mil habitantes de Manari, quase dez mil vivem na área dos sítios. A agricultura é de subsistência. Pequenas plantações de feijão e mandioca surgem no cenário predominantemente verde pelas chuvas da época. Bodes, cavalos, bois, guinés e urubus cortam o caminho.
A área urbana de Manari se aproxima. Os paralelepípedos avisam o início da cidade. Duas placas de propaganda de obras públicas saltam aos olhos: "Luz para Todos - investimento de R$212.811,25". "Pavimentação das vias públicas - investimento: R$103.974,99". Esta última, aliás, explica os paralelepípedos. Até bem pouco tempo, as ruas eram de barro. Seria uma ironia quase perversa esperar por placas dotipo: "Bem-vindos a Manari". Aqui começa a cidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil.
Gildo é o motorista da equipe de reportagem do Diario que foi até Manari. Enquanto a mãe das sete crianças mostrava os quatro cômodos apertados, sujos e escuros da pequena casa em que eles vivem - na zona rural de Manari -, desviei os olhos para o lado de fora. Na sombra de um pinheiro infrutífero, Gildo estava cercado pelos meninos e meninas, com a pequena faca nas mãos, operando aquele que seria o "milagre da maçã". Uma cena espontânea que reflete um sentimento comum para quem chega até ali: é difícil não se envolver com a realidade de Manari.
Dona Aneci tem 40 anos. O corpo franzino revela fraqueza. Recém-operada de uma ligação de trompas, anda muito devagar, apoiando-se nas paredes. A voz, cansada, não desperdiça palavras: "Não consigo mais trabalhar", lamenta. Aneci nunca foi para a escola e começou a lida no campo aos oito anos de idade. Aos 15, estava casada e grávida pela primeira vez. Ainda teria outras 20 gestações pela frente. Perdeu seis delas e teve 15 filhos. Cinco deles morreram nos primeiros anos de vida vítimas da desnutrição. Os outros dez resistem como podem. Os três mais velhos pegaram o ônibus para São Paulo. Nunca conseguiram um emprego fixo, vivem dos "bicos" na cidade grande e nunca puderam mandar dinheiro para casa.
Os sete que ficaram com a mãe esperampor dias melhores. Uma espera que se equilibra no limite extremo da sobrevivência. Uma bacia de metal com farinha de mandioca e uns pequenos pedaços de carne seca pendurados em um barbante era todo o estoque de comida que existia na casa. Dinheiro praticamente não existe ali. Aneci recebe apenas R$ 95 de Bolsa Família.
A alimentação depende diretamente do leite doado pelo governo e da agricultura de subsistência. A família planta feijão e mandioca nos arredores de casa. Mas a chuva nem sempre ajuda. E a última colheita foi toda perdida. "Tem dias que não tem o que botar na panela. Só a farinha misturada com água". Desesperado, o marido de Aneci também foi embora para São Paulo desde fevereiro. "Da última vez, ele me falou que pelo jeito que estão as coisas por lá, vai ter que voltar a pé para casa".
As lágrimas que pesam nos olhos de Aneci enquanto relata a sua vida dispensariam todos os números e análises do Censo do IBGE e do Atlas do Desenvolvimento Humano. Os R$ 30,43 de renda per capita; os 89,9% de pobres; os 63,9% de adultos analfabetos; a escolaridade média de 1,3 anos; a morte antes dos cinco anos de 120 crianças para cada mil nascidas.
Toda a miséria está ali. Na falta de comida; na necessidade de remédios; nos retalhos de colchão velho espalhados pelo chão de barro onde as crianças dormem; na falta de um banheiro (os banhos são na cisterna e o resto, no mato mesmo). O pior lugar para se viver é aquele em que sequer podemos chamar a existência de vida. Mas os olhos de quem passa não enxergam a mesma realidade dos de quem fica.
Um sorriso - "A vida hoje está muito melhor", garante Aneci - tomando por base algo que parece invisível para quem chega ali pela primeira vez. Como? Onde? Por quê? Ela então começa a explicar o que mudou nos últimos anos. O acesso à assistência médica, a cisterna que junta água no quintal de casa, a multimistura que evita a desnutrição infantil, a escola que educa os filhos#
"Meus filhos que morreram não tinham médico, nem alimento. Hoje, os meninos dificilmente teriam morrido. Nunca mais ouvi falar de uma criança que tenha morrido doente ou desnutrida por aqui", relata Aneci.
Manoel, 15 anos e aluno da 1º ano do ensino médio , assumiu precocemente a função de "homem da casa" e lembra com um sorriso infantil das longas caminhadas em busca de água: "Saíamos ainda de madrugada. A gente tinha que andar umas três horas para ir, encher os baldes e voltar. Todos os dias...". Hoje, usa esse tempo plantando feijão. Está sempre dando uma olhada na terra. Diz que vai colher três sacos neste mês. Difícil foi convencer Manoel a tirar a foto ao lado da família. Queria colocar a "roupa social" para ser fotografado.
Grandes mudanças. Pequenos milagres. Feitos com a mesma essência daquela da maçã. Quando o "estar" se transforma em "integrar". O "dividir", em "multiplicar". E foi assim que o fato de ter sido considerada a pior entre as 5.507 cidades do Brasil (tomando por base os dados colhidos no Censo do IBGE de 2000 e interpretados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano) acabou se tornando uma espécie de grito de socorro. O país - poder público e sociedade civil - ouviu e descobriu Manari. A cidade que as placas não anunciam, que a miséria não deixava existir. Um lugar onde não nascem maçãs.
Continua amanhã:
"Aqui até o nada serve". A frase é de Teresa Maria dos Santos. Agricultora de 54 anos. Difícil entender onde ela quis chegar. Diante da reação surpresa de quem a entrevistava, ela reforça sua teoria sobre o "nada" e a sua cidade: "...e não serve, não?" Que lugar é esse onde até o "nada" tem a sua utilidade? Que lugar é esse em que os índices sociais revelam uma miséria mais perversa do que aquela que habita os grandes centros urbanos ou as extremidades daquele mesmo Sertão? Mais estranho ou surpreendente é ver que a frase melancólica de Teresa vem acompanhada de um sorriso. De onde vem esse sorriso em um rosto de tantas marcas? Desenhado com traços de alívio e mais um pouquinho de esperança. Esperança, a palavra do amanhã. Da reportagem de amanhã. Quando tudo começará a mudar...