Fred Figueiroa (Diario de Pernambuco - 6 de setembro de 2009)
O zagueiro argentino Batagliero estava com a perna fraturada. Ainda assim, foi levado ao estádio Monumental de Nuñes na tarde do dia 10 de fevereiro de 1946. Deitado numa maca, ele foi conduzido pelo gramado, enquanto os 80 mil torcedores bradavam gritos de fúria. Batagilero sofreu a grave lesão três meses antes, em um choque com o brasileiro Ademir Menezes numa partida válida pela tradicional Copa Roca, disputada em São Januário e vencida pelo Brasil numa histórica goleada de 6 x 2. Aquela cena dantesca do jogador com sua perna fraturada sendo exibido para os torcedores furiosos marcava o início de um jogo que mudaria para sempre os rumos das duas seleções e, consequentemente, do futebol mundial.
Naquela noite, naquele estádio, Argentina e Brasil disputariam a final da Copa América - no 30º e mais violento duelo entre as duas seleções. Mas ninguém imaginava que ali chegaria ao fim uma era do esporte sul-americano. Terminava a Era da inocência. A Era da cordialidade. E, sobretudo, a Era da superioridade do futebol argentino sobe o brasileiro.
Os relatos históricos sobre a batalha campal na final da Copa América de 1946 subestimam a influência daquela partida para o futuro e o desenvolvimento do futebol das duas seleções. As conseqüências daquele jogo são fundamentais para entender porque a rivalidade entre os dois países se tornou tão extrema e, numa análise mais detalhada, porque o Brasil - que fez sua primeira partida oficial doze anos depois da Argentina e tinha bem menos qualidade técnica, experiência e estrutura - conseguiu conquistar a primeira Copa do Mundo 20 anos antes dos argentinos vencerem o primeiro mundial (em 1978, quando o Brasil já era tricampeão).
Não seria apenas mais um jogo de futebol. Isto já estava claro. Se na primeira viagem do Brasil à Buenos Aires em 1914, a Seleção foi recebida com flores e banquetes; na terceira em 1920, um jornal local publicou uma charge desenhando os brasileiros como macacos. Assim, fica claro que a rivalidade entre as duas seleções já existia em 1946 - ainda que discreta, natural pela proximidadegeográfica e disputa pela liderança política e econômica do continente. Mas a perna quebrada de Batagliero e a goleada por 6 x 2 no jogo anterior (a maior sofrida até então pelo país) foram transformadas em munição para uma guerra moral. Os argentinos encaravam a final da Copa América como uma questão de honra nacional. A sede de revanche e de vingança estava explícita no comportamento da torcida nas arquibancadas do Monumental de Nuñes - enquanto o zagueiro machucado era carregado como um herói de guerra.
E o pior aconteceu aos 28 minutos do 1º tempo quando, numa dura dividida com o brasileiro Jair, o zagueiro, capitão e ídolo argentino Sálomon sofreu uma fratura dupla na tíbia e perônio (tão grave que ele jamais voltou a jogar pela seleção). O clima que já era tenso transformou o jogo numa verdadeira batalha campal. Os brasileiros tentaram fugir para o vestiário, mas nem todos conseguiram. Os que ficaram no gramado foram espancados por jogadores, soldados montados a cavalo e até torcedores (estima-se que,pelo menos, 500 invadiram o campo). Foram 70 minutos de paralisação, até que a polícia argentina obrigou que o Brasil voltasse para o jogo - ameaçando não fazer a segurança em caso de uma desistência. A partida seguiu com socos, pontapés, cotoveladas e ameaças. No primeiro lance, Ademir Menezes foi nocauteado com um soco na nuca. O Brasil sentiu e Argentina não teve dificuldade para vencer por 2 x 0.
A Guerra Fria
Mas a verdade é que a batalha 1946 nunca terminou. Depois daquela noite, as federações do Brasil e da Argentina cortaram relações. E as duas seleções passaram 10 anos sem se enfrentar. Uma década em que o ódio impedia não apenas o encontro, como qualquer aproximação entre as seleções.Uma verdadeira "guerra fria" que interferiu direta e indiretamente no cenário da época e na construção da história do futebol. A Argentina, por exemplo, se recusou a disputar duas edições da Copa América (em 1949 no Brasil e em 1953 no Peru) e até mesmo duas Copas do Mundo. A de 1950, por ser realizada no Brasil, e ade 1954 pelos vários problemas políticos decorrentes do rompimento com a CBD. Uma poderosa geração do futebol argentino se perdeu já que o país passou 24 anos sem disputar uma Copa.
O rompimento também fez com que o Brasil ficasse de fora de duas edições da Copa América, em 1947 (no Equador) e em 1955 (no Uruguai). Mas esta década sem clássico foi inversamente proporcional para os dois países. Até o dia 10 de fevereiro de 1946, a Seleção Brasileira havia feito 92 jogos oficiais, enquanto a Argentina já havia disputado 245 partidas. Existia um abismo estrutural e de experiência internacional entre o futebol dos dois vizinhos sul-americanos. Naquele ano, a Argentina já conquistava a sua 9ª Copa América enquanto o Brasil tinha apenas dois títulos sul-americanos (o Uruguai tinha 8). No confronto direto, a Argentina tinha o dobro de vitórias (18 x 9).
Pelo cenário da época, não é errado afirmar que - se não houvesse o rompimento em 1946 - a Argentina inevitavelmente teria ampliado esta superioridade sobre o Brasil. Mas a década sem clássicos foi extremamente nociva para o futebol do nosso maior rival. Para se ter uma ideia, neste intervalo de 10 anos, a Seleção Brasileira disputou 49 jogos e a Argentina apenas 26. Mas observando os resultados, fica claro que eles possuíam equipes mais fortes. Das 26 partidas disputadas, os argentinos venceram 20 e perderam apenas duas (amistosos contra a Inglaterra em Londres e Itália em Roma). Contra adversários sul-americanos, foram 18 confrontos e nenhuma derrota. Disputaram apenas duas edições da Copa América e foram campeões.
Já nos 49 jogos disputados pelo Brasil naquela década, a seleção ganhou 31 e perdeu nove vezes - sendo oito para adversários sul-americanos (5 derrotas para o Uruguai, duas para o Paraguai e uma para o Peru). A outra derrota foi para a Hungria na Copa do Mundo de 1954. Dois Sul-americanos que disputou, conquistou um, jogando em casa. Das duas Copas do Mundo, chegou a uma final, também em casa, e cujo final da história todos sabem.
O reencontro
No dia 5 de fevereiro de 1956, a história do clássico Brasil x Argentina voltou a ser escrita. O 31º jogo - dez anos depois - aconteceu no estádio Centenário de Montevidéo durante a Copa América. Os dois países já não eram os mesmos As duas seleções já não eram as mesmas. O Brasil mudara até mesmo a cor da camisa, trocando o branco pelo amarelo - mas, principalmente, era um time amadurecido, experiente e dali por diante, motivado pela rivalidade que, a partir de 1946, excederia os limites e as razões do esporte. Rivalidade que não raras às vezes - e com certa razão - foi chamada de guerra, funcionando como reflexo e escape para conflito sociológicos, culturais e econômicos. Em alguns momentos, se confundindo com o ódio - gerando episódios de extrema violência e preconceito racial.
As intimidações passaram a ser freqüentes. Quase como uma tática de jogo utilizada pelos dois lados. O jornalista Newton Cesar de Oliveira Santos, que acaba de lançar um livro de 616 páginas "Brasil x Argentina- Histórias do maior clássicodo futebol mundial (1908-2008)" fez uma vasta pesquisa sobre todos os jogos já disputados entre as duas seleções e chegou a conclusão que em 50% deles houve brigas, agressões e expulsões.
Voltando ao jogo do reencontro, a vitória por 1 x 0 da agora seleção canarinha iniciava a 2ª fase desta história. A Era da superioridade brasileira. Se nos primeiros 30 duelos, a vantagem da Argentina era de 18 x 9. Nos 30 jogos seguintes, foram quatro vitórias a mais para os brasileiros (14 x 10). Mas aquela diferença de 9 jogos nos confrontos diretos (estabelecida até 1946) ainda demorou longos 60 anos para ser tirada.
RIVALIDADE EM NÚMEROS
Antes do rompimento
Partidas oficiais disputadas:
Argentina - 246
Brasil - 93
Confronto diretos
Argentina 18 x 9 Brasil
Copa América
Argentina - 9 títulos
Brasil - 2
A guerra fria (1946- 1956)
Jogos contra outros adversários
Argentina - 26 (20 v/ 4 e / 2 d)
Brasil - 49 (31 v / 9 e / 9 d)
Copa América
1947 - Argentina campeã / Brasil não disputou
1949 - Brasil campeão / Argentina não disputou
1953 - Brasil vice / Argentina não disputou
1955 - Argentina campeã / Brasil não disputou
Copa do Mundo
1950 - Brasil vice-campeão / Argentina não disputou
1954 - Brasil / Argentina não disputou
Pós-guerra fria
Confrontos Direto (Vitórias)
Brasil 27 x 15 Argentina
Copa América
Brasil 6 títulos
Argentina 5 títulos
Copa do Mundo
Brasil 5 títulos
Argentina 2 títulos
Copa das Confederações
Brasil - 3 títulos
Argentina- 0
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